24 septiembre 2024

"Lisboa é um parque temático para turistas analfabetos"

Entrevista de Ricardo Alexandre - tsf.pt - 24/09/2024

Arturo Perez-Reverte é dos mais lidos escritores de língua espanhola. Foi repórter de guerra mais de 20 anos. Foi ao México e escreveu sobre a Revolução de 1911, mas principalmente sobre os meandros da mente humana. Na TSF, o iberista desassombrado fala sobre como o turismo tornou Lisboa aterradora.

Comecemos pelo protagonista, Martín Garret Ortiz, um engenheiro de minas que se vê envolvido na recolução mexicana do início do século XX… A forma como o descreves, o relato das suas sensações interiores, o modo como se vai habituando às atrocidades à sua volta é a prova de que a guerra muda sempre, como que inevitavelmente, uma pessoa?

A guerra muda as pessoas, a mim mudou-me, 21 anos de guerra mudaram-me, essa é a realidade. A aprendizagem de Martín Garrett é a de mim mesmo. Eu uso a minha própria experiência para fornecê-la e ele. É um jovem, com pouca experiência e a violência, a revolução, a morte, tudo, o sexo, a lealdade, amizade, solidão, fracasso, tudo isso o transforma; dão-lhe maturidade, tornam-no em alguém maduro, em alguém preenchido. É um romance de aprendizagem, de formação, não é a guerra da revolução, mas a dos seres humanos nessas circunstâncias. O que me fascinou na guerra não foi a guerra em si. A guerra é horrorosa, mas como as pessoas se comportavam na guerra, na guerra é possível encontrar ações com sentido humano. E isso é o Martin. Garrett descobre.

Por isso escreve que é um livro sobre a assombrosa descoberta das regras ocultas que determinam o amor, a lealdade, a morte, a vida…

Exatamente, exatamente. Ou seja, acredito que o ser humano, até que se veja em situações extremas, não chega ao fundo. Não estou a falar de guerra, estou falando da vida, de um polícia, de um hospital, o que é a doença, a dor, o fracasso, qualquer situação extrema faz o homem ir além do imediato, não? O homem precisa, para a sua aprendizagem total, de tocar o fundo das coisas, não porque a revolução, a guerra, seja uma bom lugar, é um lugar adequado para manifestar isso.

O livro nasceu com base numa história real, que ouvias em casa sobre um amigo do teu bisavô… ou seja, um outro Martín Garret existiu mesmo?

Não é assim exatamente. O meu avô era engenheiro de minas e um colega e amigo dele foi para o México e esteve na Revolução Mexicana. Ele não combateu, mas viveu isso muito de perto, e as cartas dele para o meu bisavô estavam em casa dele, eu li-as, estavam lá. Ele contou coisas sobre Pancho Villa. Então, achei uma boa ideia usá-lo como personagem base para criar o meu próprio personagem.

Então isso significa aproximar a ficção da tua própria biografia?

Bom, todo escritor, pelo menos o tipo de escritor que eu sou, ele é aquilo que mais viveu, aquilo que mais lê, o que a biografia imagina. Para mim é fundamental. Quando os meus romances falam de violência, de morte, isso não aprendi nos filmes, nem aprendi no balcão de um bar a beber ou a falar sobre ser humano. Aprendi observando, vendo pessoas a matar, a lutar e a morrer. Portanto, há uma parte biográfica importante. Não a utilizo como material direto, mas utilizo-a como base narrativa. Quando tenho que contar essas coisas, recorro às minhas próprias memórias.

Ou seja, nunca e jamais, sai de ti o repórter de guerra?

Claro. É como quando foste padre ou prostituta, isso marca o caráter,  nunca se pode esquecer, tens isso sempre contigo. Há muitos anos deixei o jornalismo e o meu trabalho é outro, mas ainda tenho as reflexões antigas, o olhar que aquela vida me deixou. A vida de repórter de guerra, deixou-me um olhar com o qual faço um romance, com o qual vejo o mundo, com o qual eduquei a minha filha, com o qual navego, com o qual falo com os meus amigos, com o qual me sento para falar contigo. Isso marcou-me. E isso, para o bem e para o mal, é o meu capital, a minha biografia.

O romance histórico com aventura é o género, é o estilo que mais te estimula como escritor?

Nem todos os meus romances são históricos, mas é verdade que os romances históricos, que neste domínio da aventura me interessam muito, têm muitas possibilidades, porque eu não faço propriamente romances históricos, quando os faço é a pensar no presente. Tento explicar o presente com mecanismos narrativos do passado, com acontecimentos do passado. Portanto, na realidade, os meus romances falam sempre do ser humano que, bem… é intemporal, quer seja em Roma, quer seja na Europa do ano 2025.

É uma revolução muito anterior aos movimentos de emancipação das mulheres, mas não deixa de ser um livro onde várias mulheres assumem um papel relevante, desde a jornalista Diana Palmer à mulher do major Garza, Maclovia Ángeles…

Em todos os meus romances há personagens femininas muito poderosas, em todos eles. Aqui há três: a guerrilheira soldado humilde e analfabeto, a rapariga da boa sociedade e a jornalista. Para mim, a personagem mais interessante dos romances mexicanos é sempre a mulher, porque já tudo foi escrito sobre os homens, escrevemos tudo sobre os homens durante muitos séculos, desde Homero até agora. O homem é espremido como um limão na paella. Mas agora há ângulos para ver a mulher que não havia antes. Há diferentes visões da mulher, novas, digamos, o herói moderno por excelência é a mulher. Bem… não sei, eu tenho consciência disso, porque na vida que levei vi muitas mulheres a atuar, não como elementos passivos, mas como actores, como protagonistas. Por isso, elas estão sempre presentes nos meus romances. E neste, quis que o México que queria contar, a mulher que queria contar, estivesse presente e estas personagens permitem-me fazer isso. Desenvolver uma mulher que luta sozinha num mundo de homens, debaixo de um céu sem deuses, com as regras dos homens. É uma luta muito interessante, muito, muito interessante.

E estas duas personagens que citei, Diana Palmer e Maclovías, são mulheres muito, muito fortes, muito determinadas, muito, muito assertivas.

Também a rapariga da boa sociedade, a terceira. O que acontece é que ela usa outras armas, é uma rapariga muito bonita, da boa sociedade. Por isso, a sua luta é diferente. Ela não quer mudar o México e não quer informar o mundo, quer sobreviver e para sobreviver quer um bom casamento com alguém com dinheiro, uma vida estável, um estatuto social. Por outras palavras, todos eles. Por outras palavras, ela também quer. Ou seja, há também algo de heroína neste tipo de mulher. Quer dizer, a mulher que quer isso também tem uma luz, está a travar uma luta, não é? E isso é interessante. Portanto, é por isso que há três formas diferentes de luta por parte das mulheres.

Foste a Ciudad Juárez para escrever o livro?

Bem, eu conheço muito bem o México, já estive em todo o lado muitas vezes.

Bem, hábitos de um antigo repórter de guerra, certamente….

Não, não é, é que a parte divertida… olha, eu odeio escrever! Sentar-me para escrever, a parte mecânica do texto… Não gosto nada disso. É como ir à escola quando eu era miúdo, não queria ir.

Mas tu és um homem de rotina, dizes de ti próprio que escreves como um trabalho normal de 8 horas por dia…

Porque é o meu trabalho. No meu trabalho, sou pago para isso, é o meu trabalho e faço-o o melhor que posso, mas o que eu gosto é de imaginar o romance. Eu gosto da fase anterior, de viajar para os sítios para tomar notas, ler livros, olhar para as coisas e situações, andar a esta luz, aquela luz daquela cor. Agora o meu romance, o meu último romance, passa-se no Mar Egeu, estou a viver na Grécia há algum tempo para o poder escrever, vai sair no próximo mês e quero dizer que esta é a parte mais bonita, é como quando te apaixonas, é quando ainda não sabes o que vais escrever. É tudo, é descobrir, aprender coisas. É uma fase excitante. Depois vem a parte rotineira da escrita. A correcção, que é detestável. Olha, se um dia houvesse um aparelho que se ligasse ao ouvido e desse saída ao romance escrito no computador eu comprava-o, porque o facto de ser escrito não me agrada nada, mas teria de  comprar o aparelho, porque não gosto do facto de ter de escrever, não gosto nada. Mas tenho de o fazer para justificar a melhor fase, que é a primeira.

Voltemos à Ciudad Juárez, como é que a vês?

A Ciudad Juárez de hoje não tem nada a ver com a do meu romance. A Juárez de 1911 ou 1921 não tem nada a ver com a Juárez de agora que é um lugar diferente, sinistro, muito complicado, nas mãos das máfias, onde as mulheres desaparecem, agora é um lugar triste e perigoso.

Isto foi o que pensei quando comecei a ler o livro, pensei: Cuidad Juarez teve esses episódios importantes da Revolução Mexicana, mais recentemente uma guerra do narcotráfico e que até hoje subsiste, já foi considerada a cidade mais perigosa do mundo. E agora tens os tempos modernos, com uma outra guerra, que é a guerra da imigração, que pergunto é algo que o estimula a escrever, o tema da imigração e dos movimentos humanos?

Não, isso eu não faço, mas há uma coisa que me preocupa. Fui educado para uma Europa com 3000 anos de memória cultural. Uma Europa feita por Homero, Dante, Virgílio, Cervantes, Eça de Queirós, Voltaire, Rousseau do Iluminismo das ideias, uma Europa que era uma referência moral no mundo, digamos que em termos de direitos humanos e liberdades do ser humano e essa Europa está a desaparecer. Essa Europa está a ser destruída por uma série de coisas complexas, a emigração em massa, os movimentos de ultra-direita que são em grande parte causados por ela. O turismo de massas que está a destruir e a devastar a Europa. Lisboa é um exemplo. Ontem, em Lisboa, dei um passeio do hotel (na Avenida da Liberdade) até ao Martinho de Arcada e fiquei aterrorizado. Há dois anos que não vinha a Lisboa. É terrível. Lisboa desapareceu, é agora um parque temático para turistas analfabetos que não conhecem Lisboa e não querem conhecer Lisboa. Tiram uma fotografia, uma selfie, e pronto, já está. Ninguém conhece a cultura portuguesa e ninguém quer saber. E estão a destruir a cidade, como destruíram Madrid e destruíram Paris e destruíram Roma e Florença. Bem, é um fenómeno internacional, mas eu esperava que Lisboa, antiga e imponente, sobrevivesse um pouco melhor, mas não, Lisboa também caiu. É muito bom para o comércio, para os taxistas, tudo isso é muito bom. Mas a Lisboa bonita, elegante e maravilhosa está morta. Está morta, não a reconheço.

É a mesma coisa, provavelmente a um nível muito mais intenso em Barcelona e em Barcelona, por exemplo, está a começar quase como que um movimento de resistência dos locais, dos autóctones ao turismo. Isso pode acontecer em todo o lado, não pode?

Não há solução. Não há como o parar. Isto é economia. É um ciclo económico. O turismo é um fator económico muito importante. Há muita gente que depende do turismo e isso não vai mudar, ninguém o vai parar, ou seja, a Europa que eu vi, que eu vivi, em que eu nasci, em que eu fui educado, morreu. Ainda bem, digo-o sem dramatismos, digo-o objetivamente de uma forma equânime, é assim: a minha sorte é que eu vivi essa Europa, nasci em 1951, eu vivi essa Lisboa, essa Paris, essa Roma, essa Madrid, essa Sevilha. Já não existem. Portanto, bom, eu tenho esse capital intelectual na minha cabeça, não, e há a biblioteca, claro, mas o mundo de hoje já não é isso, essa Europa está morta, morta. Agora a Europa, são quatro filhos da puta que estão em Bruxelas a ver como põem as tampas ecológicas em vez de legislarem. São mesmo! É isso que a Europa é agora? Não, não faz sentido. Onde estão eles? Os Churchill, Adenauer, De Gaulle, papa Paulo VI, João XXIII? O Krutchev da União Soviética? Não, não estão. Acabou-se, acabou-se, acabou-se.

Voltando à guerra… A guerra destrói, mata, provoca dor e sofrimento, seja em África, na América Latina, Balcãs, no Médio Oriente ou na Ucrânia… mas a guerra pode também ser uma espécie de escola de vida?

É mesmo escola da vida, quer dizer, a guerra é horrível. Mas aprendemos coisas na guerra que nunca aprenderemos na vida. Numa semana de guerra aprende-se mais do que em 10 anos de vida, não é? E à guerra devo a lucidez, as ideias, o conhecimento. A guerra é terrível, obviamente, mas gera uma série de comportamentos diferentes que são impossíveis aqui, não? Aqui o ser humano em paz está rodeado de um monte de verniz, de dissimulação, de factores sociais que o impedem de ser o verdadeiro ser humano. A guerra salta por cima de tudo isso e a soma é o que é, no bom e no mau. Então, vê o ser humano na guerra: carrasco e vítima, grande e miserável, o cruel e o terno e o compassivo e, por vezes, na mesma pessoa. Em alturas diferentes, uma pessoa pode ser tudo isso. Portanto, a guerra é uma extraordinária escola de lucidez. Para mim, foi uma escola de aprendizagem. Paradoxalmente, aprendi mais na guerra do que na paz, tal como aprendi mais com os maus do que com os bons. Com um bom aprende-se a bondade; com um mau, aprende-se uma série de coisas. Agora, há quem defenda o cancelamento e coisas do género. Aparece um Hitler e diz-se para ele não falar, vá-se embora. Penso que não, é o contrário: senta-lo, fá-lo falar, aprender com o mal: como é que conseguiu matar milhões de Judeus, filho da puta? Como é que conseguiu que o parlamento o fizesse? Diga-me e depois matem-no, executem-no, enforquem-no. Conta-me e depois matam-no, executam-no, enforcam-no, mas primeiro ouvem-no porque aprendem muito com o mal, isso é outra coisa que aprendi com a guerra.

—'Linha da frente', sobre a Guerra Civil de Espanha, ou este 'Revolução' poderiam ser transformados em filmes de cinema, não? Há planos para isso?

A 'Linha da frente' não, não houve acordo. A revolução, os mexicanos estão a fazer uma série sobre o meu livro 'Revolução'.

Já está a ser transmitida agora?

Não, ainda não. Está na fase do guião.

Na fase do guião. Bem, já falámos de rotina, de trabalho. É para si então como profissão, 8 horas por dia?

Todos os dias, Levanto-me de manhã, nado, tomo banho, trabalho 8 horas, 7 horas, nos dias maus 6. E quando não consigo ver mais aquilo, vou velejar. Navego num veleiro que tenho no Mediterrâneo, volto e continuo a trabalhar e assim por diante e tenho um romance lançado quase todos os anos. Agora vai sair um novo dentro de uma ou duas semanas, vai sair um romance novo em Espanha.

Como se chama?

—'A Ilha da Mulher Adormecida'.

E é sobre…?

No Mar Egeu em 1937, uma história triangular, um marinheiro espanhol, uma mulher e o seu marido que é um aristocrata grego nas ilhas gregas, uma história de amor, de guerra, de aventura, de… mais do que amor, de sexo. E estou a levar jornalistas comigo agora para a Grécia e vou apresentar o romance lá e por aí fora.

Continua a pensar que uma Ibéria unida seria uma grande potência face a uma Europa que olha de soslaio para o Sul?

Absolutamente. Penso que em Espanha e Portugal deveria haver um Ministério dos Assuntos Ibéricos, dois ministros dedicados a entender-se, a negociar, a fazer coisas em conjunto. Não percebo porque não o fazem, não é assim tão difícil, há ministérios em Espanha de tudo, ou seja, os ministérios mais ridículos e mais absurdos, nós temo-los. Bem, um Ministério dos Assuntos Ibéricos, com Ministros Ibéricos dedicados a reforçar os laços culturais, sociais e políticos, a votar sempre juntos na Europa, a procurar interesses comuns, para que a fronteira não exista de facto, é isso que devia haver. Se formos sérios, temos a mesma história, se viemos do mesmo sítio, fomos igualmente maltratados por um ou por outro. Sofremos ditaduras, passámos pela miséria, entendemo-nos bem, conhecemo-nos muito bem, sobretudo os portugueses conhecem os espanhóis; os espanhóis sempre viraram as costas a Portugal. Por outras palavras, sou um iberista convicto, sei que é impossível porque o mundo é um lugar estúpido, o mundo é estúpido. Espanha e Portugal são estúpidos e não conseguem ver. Mas devia haver um Ministério dos Assuntos Ibéricos. Já imaginaram como seria bom, fazer coisas em conjunto? Votar em conjunto na Eurovisão, sei lá? Não sei, não seria tão bonito se a fronteira de Portugal acabasse no Mediterrâneo e a de Espanha no Atlântico? Seria bonito.

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