18 septiembre 2022

"Os políticos têm pouca formação intelectual"

Entrevista de Carlos Maria Bobone - observador.pt - 18/09/2022

O novo romance de Arturo Pérez-Reverte, 'Na Linha da Frente' (publicado pela Asa), trata de um tema tão estudado quanto desconhecido. A guerra dentro da guerra civil de Espanha: as batalhas, as aventuras dos soldados, que nos parecem transportar para outros tempos, em que a literatura de aventuras inflamava os corações dos jovens e em que os enredos não tinham ainda caído em desgraça entre os literatos. Quisemos saber porque é que Reverte se aventurou neste território minado, que domina grande parte do debate histórico-político em Espanha, e porque é que permanece fiel a um género de romance que nos deu Dumas ou Júlio Verne, mas que parece hoje quase condenado ao ostracismo.

Porquê outro romance sobre a guerra de Espanha? Já temos os de Bernanos, Foxá, Javier Cercas…

Bom, primeiro porque, entre os vários livros que se escreveram sobre a guerra de Espanha, nenhum falava propriamente de batalhas. Falam de ideologias. Depois, a maior parte dos livros estão escritos a partir de um lado ou de outro. Ou apoiavam um lado, ora contavam a história de outro dependendo da época, na altura do franquismo eram todos nacionalistas, agora são todos republicanos mas nenhum livro abarcava de uma maneira global todos os intervenientes numa ação de guerra. Eu queria um livro que não tocasse na política, apenas na condição humana perante a guerra. Esse livro ainda não se tinha escrito. Este é um romance de pessoas, não ideias. As ideias fazem parte do fundo, mas não são o centro. Eu estive em muitas guerras como repórter, fiz várias guerras civis, e garanto que poucas vezes vi lutar por ideias. Vi lutar por coisas imediatas: sobrevivência, ódio, rancor, solidariedade… Estes aspetos humanos da guerra são os que queria destacar. E há uma coisa que me interessa. Quando vemos as coisas de fora, é fácil traçar linhas. Ucrânia: Putin é o mau, ucranianos são os bons. Guerra Civil Espanhola: República era boa, Franco é o mau. É fácil. Mas quando nos aproximamos do ser humano, a coisa é muito mais complexa. O ser humano tanto é herói como besta, é bom e mau, é complexo. Então, quando nos aproximamos das personagens, a linha que separa o bem do mal é muito mais difusa.

Mas se é o humano, o imediato, aquilo por que as pessoas lutam, então porque é que é o político que tem a capacidade de agregar desta maneira?

Porque não é o político que luta. O político maneja ideias, bandeiras, conceitos, hinos nacionais, trompetas, retórica, demagogia, que é o que leva o pobre desgraçado a lutar. Este romance é sobre os pobres desgraçados que lutam. Dou-lhe um exemplo: na Guerra Civil Espanhola lutaram o meu pai, o meu tio e o meu avô. Eram gente da alta burguesia mediterrânea, com posses. O meu avô era republicano, mas um daqueles republicanos liberais antigos, culto, com biblioteca, não era um esquerdista de rua, era um republicano de classe alta e lutou pela República. Os filhos, que eram jovens bem educados, lutaram pela República. O meu sogro, que era um jovem esquerdista militante, lutou pelos nacionalistas, porque calhou desse lado. Traçar linhas que digam “deste lado eram todos fascistas, deste eram todos comunistas” é ridículo e para mais está errado. Eu queria um romance que olhasse para os seres humanos com equanimidade. Sem condicionamentos prévios. Para esclarecer: não é com equidistância, porque eu estou do lado da República. Equidistância é, estando eu deste lado, poder ver no adversário virtudes também. Respeitar o adversário.

No livro há uma personagem, no regimento XIV Tabor, dos nacionalistas, que não é minimamente comprometido politicamente, mas que luta pelas tropas de Franco porque está numa zona franquista. Esta é também uma guerra regional?

Claro. Depende da zona em que se estava quando começou a guerra civil. Quando umas tropas dominavam uma terra, alistavam os que lá estavam. Não se podia escolher, muita gente não pôde escolher um lado, e isso é importante sublinhar. Quando nos dizem que havia duas Espanhas, uma vermelha contra uma fascista, isso é mentira, é muito mais complexo. O que se passa é que os políticos atuais, como não têm um discurso intelectual sólido… Isto é, a geração atual de políticos em Portugal, em Espanha, na Europa, tem muito pouca formação intelectual e histórica, são mais demagogos, e por isso estão a recuperar a guerra civil como um acontecimento de bons contra maus, e não foi assim. Mesmo do ponto de vista ideológico não é uma guerra simples. Muitos falangistas da primeira hora, ou das JONS, considerariam uma traição a ideia da Falange Espanhola Tradicionalista, e estariam mais próximos do sindicalismo revolucionário do que de um conservadorismo tradicional; o mesmo do outro lado, em que as diferenças entre Anarquistas catalães e republicanos de Madrid eram muitas vezes maiores do que aquelas que se encontrariam entre a esquerda e a direita parlamentar. Acaba por não ser bem uma guerra de esquerda e direita… Pois não. Aliás, as esquerdas lutaram entre elas mesmo durante a guerra: anarquistas contra comunistas, republicanos contra comunistas… E na direita também: falangistas contra réquétés: foi muito mais complexo do que o que o discurso simplista dos políticos de agora procura contar. Este livro é a minha reação contra isso. Afastar-me da política para me centrar no humano, que é muito mais complexo e interessante.

Qual é o ambiente que leva a uma guerra destas?

O que leva à guerra civil é a má-fé e a incompetência dos políticos. E também a cumplicidade, passiva e ativa, dos jornalistas. Numa guerra civil, em todas elas eu fiz oito guerras civis [enquanto jornalista]: Angola, Moçambique, Salvador, Nicarágua, Bósnia, Roménia, et cetera…— há sempre um ou vários políticos que manipulam de uma forma irresponsável o sentir coletivo do povo, os nacionalismos, regionalismos, localismos, aquelas coisas pequenas que dominam a vida das pessoas, e há depois uma imprensa parcial que acicata e toma parte no aparato perverso da coisa. As matanças dos Tutsis e dos Hutus, em África, foram alimentadas pela telefonia. A telefonia incitava as pessoas a matarem os vizinhos. Frequentemente deitamos as culpas nos políticos, esquecendo que a imprensa teve muita culpa nas guerras. Na Alemanha Nazi, na Rússia Comunista, na Rússia da Revolução, na Espanha da Guerra entre Republicanos e Nacionalistas, está sempre a imprensa. Ela não é inocente quando secunda e apoia o jogo dos políticos que jogam com o coração e a pele do povo.

Stefan Zweig, nas memórias, diz a certo ponto que a Primeira Guerra, apesar do discurso inflamado que se via nos jornais, não se previa na vida quotidiana. Em Espanha haveria um ambiente semelhante, uma normalidade distante da fúria retórica dos jornais, que acaba por se deixar contaminar?

Sim. É igual. Isto é: há uma primeira fase em que as pessoas pensam: “Bom, não irão muito longe, não chegarão a esse extremo, isto é só retórica de quatro ou cinco políticos”… Depois, a imprensa começa a insistir, a dar trela, e o político começa a inflamar o discurso e a estar permanentemente nas primeiras páginas, o que faz com que esteja sempre diante da opinião pública. Começa a envenená-la. Nenhuma guerra civil é de um dia para o outro, todas sofrem um processo de maturação. E é curioso que normalmente jogam com os baixos instintos. Dizem: “Vão tirar-vos a casa, vão tirar-vos o dinheiro”… É o que fazem todos, brancos, negros, fascistas, comunistas, feministas, vão assinalando o inimigo, marcando casas, vilas, pessoas… E insisto, com a cumplicidade amplificada da imprensa vão criando um ambiente em que o que parecia impossível se torna realidade.

Vê-se esse ambiente hoje?

Não neste extremo. Hoje em dia o povo é tão estúpido como era há cem anos, mas tem mais informação, porque circula muita informação. Bem ou mal, isso é outra coisa, mas como circula muita informação, o povo é mais difícil de enganar. É possível, vai-se enganado para muitas coisas, mas há certos extremos, certos extremos de violência, a que é mais difícil levar. Se pensarmos num campónio do Algarve, da Andaluzia ou da Extremadura em 1936, sujeito à fome ou à miséria, é muito fácil inflamá-lo. “O rico tem a culpa, o padre tem a culpa, atira-te a ele, vá!”. Hoje é mais difícil. Ele vê televisão, tem internet, ainda que esteja na miséria, sabe que há outros meios, outros caminhos. É claro que é possível manipular, mas nestes extremos é mais difícil. É certo que há um problema grave. Como toda a gente tem acesso às redes sociais, toda a gente pode expressar a sua opinião. Agora dá-se o mesmo valor ao que diz Vargas Llosa e ao que diz um twiteiro analfabeto. Isto cria um ruído, um excesso de informação em que é muito difícil distinguir o bom do mau, o verdadeiro do falso, o útil do inútil. O problema é que o único antídoto contra isto é a cultura. A educação do recetor para triar. O que acontece é que o recetor tem cada vez menos cultura, menos independência intelectual, e isso deixa-o muito desprotegido. Não creio, ainda assim, que se chegue a estes extremos.

Mas como é que se educa se a universidade é precisamente um dos sítios em que a liberdade parece mais cerceada?

Sim. Há um fenómeno muito curioso. O português, o espanhol, nunca votam a favor de alguma coisa, votam contra alguém. Voto no que te vai lixar a ti. O problema é que os erros da esquerda, de uma certa esquerda, pelo menos, os excessos em temas como ultrafeminismo, ultrademagogia, ultrapopulismo, estão a levar o povo, por reação, para o outro lado. Gente que votaria em partidos de centro, em reação à esquerda, vota em partidos de extrema-direita. E amanhã será ao contrário, atenção. Quando for a direita a dominar, por reação o povo votará na esquerda. Este pêndulo é um risco enorme.

Passemos agora a um assunto diferente. O Arturo pertence a uma tradição romanesca, a do romance de aventuras, que parece perder cada vez mais cultores…

Bem, cada um tem as suas obsessões. Eu fui criado numa literatura interminável de viagens, de aventuras, com Stevenson, Conrad, Jack London, Melville, Dumas, Fenimore Cooper, com os grandes folhetins de Galdós, Eça… Isso criou para mim um território que é o meu e em que gosto de estar. Não escrevo um romance para contar o problema de alguém que vai no metro e tem um divórcio e um filho… Isso a mim não me interessa, não preciso de ler isso, falo com o meu vizinho e já está. Quero entrar em mundos e situações que não são estas, mas que as permitem entender!

Parece que hoje a linguagem épica migrou para os temas quotidianos, mas que os temas épicos ficaram esquecidos.

Não ficaram esquecidos, eu escrevo-os, e há mais escritores que os escrevem. Há uma literatura e não digo que seja má, o Javier Marías era um extraordinário escritor da vida intimista mas esse é um território que não me interessa. A mim interessa-me quando o ser humano sai do ordinário e enfrenta o extraordinário. A verdadeira aventura é quando o homem sai do mundo habitual, e é esse o meu mundo narrativo. A aventura, a viagem, o desafio, o mistério, o enigma, o perigo… Bem, e a minha vida também é essa. Eu vivi assim. Escrevo com o que imagino, com o que li e com o que vivi. E ainda que não seja um escritor autobiográfico, creio que se aflora nos meus livros um pouco da vida que vivi.

Dá-nos uma ideia do Homem como um ser não acabado, que pode fazer mais do que é normal e não está preso a si próprio.

Julgo que o ser humano que sai do seu território, enfrenta o desconhecido e depois regressa, tem um olhar mais rico. O perigo, a aventura, o desafio, o ter de fazer frente a problemas imprevistos, melhora o ser humano. Melhora a sua qualidade intelectual e física. Porque o ser humano precisa da aventura, do sacão da incerteza, para se completar. Pelo que acredito que aqueles que viveram a guerra, o perigo, têm um conhecimento maior da vida, uma lucidez maior do que aqueles que nunca saíram de casa ou do autocarro. A aventura educa o olhar, é sobretudo isto. O Homem de hoje vive num mundo muito confortável, saudável… Isso afasta-nos um pouco da realidade, a vida é mais dura do que isso, e nós esquecemo-lo. Então, quando vem a catástrofe, encontra-nos completamente impreparados para ela. E isso também nos faz mais egoístas. A gente que viveu guerras, epidemias, incertezas, tem mais solidariedade, é mais humana, porque sabe que o mundo é um lugar em que precisamos de ajudar-nos.

Isso é um pouco diferente do discurso contemporâneo habitual sobre a guerra, focado no trauma…

Certo, certo, isso também acontece, mas não acontece só isso. A guerra aproxima-nos do coração humano de uma maneira única. A guerra é uma escola muito interessante. A quem vai à guerra com uma preparação, com uma serenidade que lhe permita sobreviver psicologicamente, a guerra dá lições muito úteis. Falo da guerra ou das catástrofes. Tsunamis, torres gémeas… As situações extremas dão à humanidade uma forma de ver muito mais lúcida e inteligente. A guerra traz-nos lucidez. Paradoxalmente, mas é assim. Aprendi em poucos dias de guerra coisas que teria levado dez anos a aprender. Junto ao horror, a guerra também me deu visão. E é justamente com essa visão que escrevo.

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